Ovo (realismo fantático - LIP II)

02:03 / Postado por Marlon Brambilla /

Do pouco que tenho a dizer sobre mim, ainda menos é sobre meu corpo. É um corpo normal. Entre normal para bom e normal para ruim, eu diria normal para normal. Corpo. Aglomerado de material orgânico que alcança a altura de um metro e setenta e cinco centímetros, setenta e seis quilogramas, cor pálida, textura macia, consistente, de proporções bem distribuídas e aspecto saudável. No âmbito matéria, é um corpo que não surpreende, mas é também um corpo que não deixa a desejar. Muito do que sou como pessoa tem a ver com o que sou como genética, mas muito do que sou como genética não tem nada a ver com nada.
A manhã começou assim, em uma posição voltada para o espelho e um olhar voltado para mim. A mochila da faculdade deveria ser esvaziada do material inútil, mas eu a enchi com ainda mais do que não precisava, não se trata de uma relação de prazer com o peso, trata-se de uma solidariedade com as coisas vazias.
Pias, copos, caixas velhas, gavetas novas, malas, bolsos, bolsas, vasos, tuppewares. Talvez meu propósito fosse esse, preencher as coisas que precisam ser preenchidas.
O dia decorreu dentro do comum, acelerado e em cenários grandes, de um planeta que me fez miúdo e alheio ao contexto das coisas. Pequeno e vazio, carregava o peso do mundo dentro de uma mochila feliz por sentir-se completa.
Fui ao banheiro, lavei as mãos, destaquei duas folhas de papel da máquina que afirmava uma ser suficiente, joguei no cesto de lixo recém trocado, me senti limpo. A caminhada pelo piso refinado continuou até a noite, num mundo de lâmpadas ligadas por sensores do movimento. Passei, nada. Passo novamente. Nada. Já não bastasse minha própria sala escura e vazia, uma outra mais palpável me confronta com a inexistência, sinto uma palpitação incomum no peito. Ofegante. Ausência de sentido. Breu.

Ser clichê: ambulância, hospital, médico, radiografia.
Ser ser: Há algo de incomum.
Nada: A radiografia não encontrou seu coração, isso é um ovo.

Ovo? Como poderia alguém ter um ovo no lugar de um coração?
O médico pareceu maravilhado, eu permaneci apático. Entre ser e matéria, o ovo estava nos dois.

Sei que se o amor não existisse ele seria criado pelos botadores de ovo.

A receita médica indica repouso e analgésicos. Dentre os conselhos, eu deveria permitir que alguém quebrasse a casca, eu poderia crescer alguns centímetros, talvez unir uns galhos, construir um ninho.

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